Uma mão de ferro e outra de veludo
Pouco a pouco, a manta de moralidade com que o Governo quis cobrir o país, exortando os portugueses a assumir a ingrata condição de virgens sacrificadas no vulcão orçamental, vai ficando mais curta. Fomos convencidos de que a universalidade dos cortes ia ser salomónica. Mas, dia após dia, vamos ficando com a certeza de que a mão de ferro de Teixeira dos Santos é, cada vez mais, uma mãozinha de veludo. Convenientemente pousada no regaço social-democrata.
O regime de excepção nos cortes salariais para os trabalhadores das empresas do Estado que o PS fez aprovar, quase sorrateiramente, no Parlamento - com a interesseira abstenção do PSD -, é a prova eloquente de um desnorte que, parecendo espontâneo, tem muito de premeditado.
Não se pode ter acessos de comoção pública quando se anunciam medidas austeras para a generalidade dos contribuintes - e para a Função Pública em particular - e depois criar excepções para não prejudicar determinados sectores, como a Banca, que - pasme-se o argumentário - não podem perder competitividade no mercado. Porque é o mesmo que dizer que há funcionários públicos que são uns calaceiros e outros, que ganham mais prémios por fora, que dão imenso prestígio ao Estado.
O filão será, naturalmente, aproveitado não só pela Caixa Geral de Depósitos (para quem foi verdadeiramente pensado este arranjinho, e que neste ano até conseguiu aumentar salários...), mas também por outras empresas em que o Estado detém participação.
Ou alguém crê que os trabalhadores da TAP, dos CTT ou da CP não vão exigir a mesma regra, ancorando-se na lógica de que também eles operam num mercado competitivo? E, já agora, alguém me explica o que é isso de competitividade de mercado? Não é suposto sermos todos, funcionários públicos e demais, competitivos?
Depois, a forma como tudo foi cozinhado: confuso o suficiente para gerar muita indignação e pouco esclarecimento. Confuso o suficiente para nos fazer crer que deve tratar-se de um equívoco.
Até porque há sempre a hipótese (remota) de estarmos na presença de um dos maiores incentivos à competitividade dos últimos anos: doravante, os funcionários públicos "normais" vão passar a ir para o emprego de freio nos dentes. Só para mostrarem quão competitivos conseguem ser.
JN - 26.11.2010